Que loucura!
Miriam Ringel
Fernando Pessoa, “Que fiz Eu da Vida?” Do português: Rami Saari e Francisco da Costa Reis, Carmel, 583 pág.
[Publicado no diário Yediot Acharonot, de Tel-Aviv, em 30/06/2006.Tradução de FCR]
Fernando Pessoa
1888-1935, poeta e escritor português, um dos maiores autores do séc.XX. Livros publicados em hebraico: ‘Livro do Desassossego’ e ‘Todos os Sonhos do Mundo’
Que fiz eu da vida? abrange toda a poesia de Álvaro de Campos que, a par de Alberto Caeiro e Ricardo Reis, é um dos três personagens centrais da constelação de poetas fictícios criados por Fernando Pessoa – constelação que abarca 72 figuras! É extraordinário que Pessoa tenha criado cada uma delas, dotadas de uma individualidade própria, como se tivessem nascido realmente. Em Portugal, o país de Pessoa, publicam-se colectâneas de poemas, exibindo na capa o nome do autor imaginário, como se fosse o autêntico e não criação do espírito de Pessoa.
Numa carta a um amigo, Pessoa descreve como ‘encontrou’ Álvaro de Campos, ‘nascido’ a 15 de Outubro de 1890 na cidade de Tavira, que concluiu o ensino secundário em Portugal e viveu em Glasgow, na Escócia, onde se formou em engenharia naval. Campos é desprendido, simbolista ocioso, um intelectual burguês e entediado. É a invenção de quem encara o mundo pelo prisma dos contrastes. E que aspecto tem? É alto, de cabelo liso e usa monóculo.
O poeta Pessoa mantém uma ‘querela’ com o poeta imaginário Campos por causa de uma jovem de vinte anos, Ofélia, que Pessoa havia encontrado realmente no escritório onde ela trabalhava. Os dois começam a estabelecer contactos de amizade, caminham de mãos dadas, trocam cartas e bilhetinhos. Porém Ofélia sente hostilidade crescente por parte do ‘amigo’ de Pessoa, Álvaro de Campos, preocupado com a eventualidade de ele deixar a poesia a favor de Ofélia. É possível que, por causa da influência do seu fictício amigo, Pessoa tenha decidido pôr termo ao romance com Ofélia.
De facto, no livro, Campos graceja com os namorados que trocam correspondência: “Todas as cartas de amor são ridículas / Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas” (Poema 225, pág. 510).
Num testemunho escrito depois da morte de Pessoa, Ofélia descreve nestes termos o poeta: "Por exemplo, o Fernando era um pouco confuso, principalmente quando se apresentava como Álvaro de Campos. Dizia-me então: - ‘Hoje, não fui eu que vim, foi o meu amigo Álvaro de Campos"… Um dia, quando chegou au pé de mim, disse-me: ‘Trago uma incumbência, minha senhora. È a de deitar a fisionomia abjecta desse Fernando Pessoa, de cabeça para baixo num balde cheio de agua’. E eu respondia-lhe: ‘Detesto esse Álvaro de Campos. Só gosto do Fernando Pessoa’. ‘Não sei porquê’, respondeu-me. ‘olha que ele gosta muito de ti…’.[1]
Campos pertence a um grupo de autores que criam sobretudo por ostentação tipográfica. Poetas que exprimem os sentimentos através de jogos de palavras e das mais variadas onomatopeias. Exemplo deste estilo encontra-se nas grandes odes que escreveu, designadamente na Ode Marítima (Poema 18). Esta ode é um poema longo e dramático, (35 páginas, na tradução hebraica), e serve também um propósito coral. A leitura desta ode equivale à audição de uma peça musical impregnada de sensualidade arrebatadora, onde as vozes dos marinheiros poderiam servir de matéria para comentários interessantíssimos.
Campos é o poeta que pretende “Sentir tudo de todas as maneiras / Viver tudo de todos os lados / Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo / Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos…” (pág. 180, poema 26 b).
Num dos poemas, (187, pág. 458) refere-se à multiplicidade de personagens criadas por Pessoa. Tratar-se-á de uma espécie de loucura ou de uma patologia para a qual está ainda por achar o diagnóstico adequado?
A poesia de Campos flui de dentro para fora, revestindo, pelo menos, três vertentes: o corpo, o sentimento e a escrita, enquanto esta constitui o modo de absorver o corpo e de produzir o sentimento. O poeta finge e põe uma máscara, mas isso não significa que não descreva uma realidade interior e complexidade sentimental, sem que saia verdadeiramente para a vida.
Por ser tão variada, a poesia de Pessoa não é fácil de traduzir. Pessoa cria por vezes, nos seus múltiplos poetas fictícios, neologismos desprovidos de qualquer sentido, cuja beleza consiste precisamente em não terem significado algum. Rami Saari e Francisco da Costa Reis, conseguiram transmitir a variedade e a multiplicidade de sentidos que se encontram na poesia de Pessoa e, assim, teve o leitor hebreu a possibilidade de travar conhecimento com uma poesia fascinante▪
[1] Obra em Prosa de Fernando Pessoa, Escritos íntimos, Cartas, e páginas autobiográficas,Publicaçôes Europa-América, ( Ib 466, livros de bolsa), p. 270
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