José Saramago e Ricardo Reis – Um Jogo de Ficção e Realidade.
Miriam Ringel.
Tradução: Fernando Ferreira da Silva, Press and Cultural Attaché of the Embassy of Portugal
Miriam Ringel.
Tradução: Fernando Ferreira da Silva, Press and Cultural Attaché of the Embassy of Portugal
O romance de José Saramago “O Ano da Morte de Ricardo Reis” foi publicado em 1984. A leitura do livro equivale à entrada num labirinto ou num jardim pleno de caminhos divergentes, nos quais dá vontade nos embrenharmos mas de onde na prática não se quer sair. Um caminho dá lugar a outro e, sendo pouco o tempo de que disponho para poder falar de todos e cada um, procurarei abordar o jogo de ficção e realidade de que o autor faz uso neste livro.
Falando sobre o romance, José Saramago disse uma vez ter-se deparado com algumas odes assinadas por Ricardo Reis. Encontrou-as quando tinha de 17 anos de idade, numa cópia da revista “Athena” que encontrou na biblioteca da escola técnica onde estudava. Maravilhado com a beleza dos poemas, José Saramago, que pouco ou nada sabia sobre Fernando Pessoa e sobre os heterónimos, não pensou na altura que Ricardo Reis não fosse uma personagem real.
Dos heterónimos de Fernando Pessoa, Ricardo Reis é, de todos, o mais instruído: é médico, sabe latim, a sua escrita é neoclássica. De carácter, é apático e vive abstraído das tragédias do mundo. Ricardo Reis é o poeta que se considera a si próprio como “sábio que se contenta com o espectáculo do Mundo”.
Não seria de admirar que dos heterónimos de Fernando Pessoa, Ricardo Reis fosse precisamente aquele com o qual José Saramago não se identificasse de todo. É no entanto ele que acaba por se tornar na personagem central de “O Ano da Morte de Ricardo Reis”. Segundo o escritor, o romance foi escrito precisamente para mostrar ao poeta o espectáculo do Mundo, e para indagar se Ricardo Reis realmente pensa que “sábio é quem se contenta em reflectir sobre o Mundo…”.
No dia 8 de Setembro de 1936 verificou-se uma revolta contra o regime de Salazar, que ficou conhecida como a “revolta dos marinheiros”. Apesar de o movimento não ter tido sucesso, já que o regime estava a par dos planos dos revoltosos, o navio de guerra “Afonso de Albuquerque” foi bombardeado, acção que causou a morte a 12 marinheiros. No romance de José Saramago, Ricardo Reis observa, a certa altura, navios da armada de guerra ancorados no Tejo. A bordo de um dos navios encontra-se o irmão de Lídia, um dos marinheiros mortos na revolta.
Transtornado, Ricardo Reis regressou a casa, deitou-se e (escreve José Saramago), “escondeu os olhos com o antebraço para poder chorar à vontade. Lágrimas absurdas, que esta revolta não foi sua. Sábio é o que contempla o espectáculo do Mundo, hei-de dizê-lo mil vezes, que importa àquele a quem já nada importa que um perca e o outro vença”.
(“O Ano da Morte de Ricardo Reis”, pg. 403).
O romance começa com um facto real: Fernando Pessoa morre, a 30 de Novembro de 1935. Segue-se a ficção: Álvaro de Campos, o heterónimo, envia um telegrama a Ricardo Reis, outro heterónimo, que se encontra exilado no Brasil há 16 anos e informa-o da morte de Fernando Pessoa. Ricardo Reis regressa a Lisboa. Prossegue a ficção.
José Saramago dá continuidade à vida de uma personagem sem futuro, desprovida de passado. O herói do romance é inventado, inspirado noutro, igualmente irreal, faz parte de uma personagem já existente na literatura, é o resultado da imaginação fértil de Fernando Pessoa. O Ricardo Reis de José Saramago é o resultado de uma alma altiva. O escritor tem, por isso, de convencer o leitor que a sua personagem tem uma dupla verdade, um duplo significado.
No conjunto das suas obras, José Saramago lida amiúde com acontecimentos históricos. Vejam-se “O Memorial do Convento”, “A História do Cerco de Lisboa” e “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”. Como obra de ficção, “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, um dos mais interessantes romances do escritor, é no entanto um dos que mais pormenores históricos parece conter. O autor escolheu localizar a acção no período que decorre entre finais de 1935 e todo o ano de 1936, época plena de acontecimentos na Europa e em Portugal, em particular a ascensão dos regimes fascistas: Franco e Espanha, dilacerada pela Guerra Civil, Mussolini e o fascismo na Itália, Hitler e o nazismo na Alemanha, Salazar e o Estado Novo, em Portugal.
Quando escreve, Saramago tem o costume de anotar numa sebenta pensamentos, ideias e pormenores que depois incorpora na sua obra. Em “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, o autor não se limitou à sua sebenta, tendo adaptado uma agenda ao ano de 1936 e copiado para a mesma os diferentes acontecimentos que ocorreram naquele ano, informação essa que depois integrou no livro.
No decorrer do romance são notórios os encontros fictícios entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis. O primeiro criou o segundo, o romancista criou a história. A pergunta que se impõe é quem criou quem? Terá sido José Saramago a criar os dois?
Quando Ricardo Reis chega a Lisboa, a Fernando Pessoa restam 8 meses de vida após a morte (…) Morto-vivo, Fernando Pessoa vê sem ser visto. Só Ricardo Reis tem a capacidade de o ver. Apenas ocasionalmente e sempre de acordo com a sua própria vontade, Fernando Pessoa dá-se a conhecer. Em tais encontros, que têm lugar em locais diversos (no quarto do hotel, onde Ricardo Reis se deita com Lídia, a camareira, no jardim ou numa rua de Lisboa, no café ou na casa alugada por Ricardo Reis), Fernando Pessoa e José Saramago troçam, afinal, de Ricardo Reis.
O nome da camareira do hotel onde se encontra Reis é Lídia (…), um nome mitológico e poético. Lídia tem 30 anos, é solteira, tem um corpo bem esculpido, é uma típica morena Portuguesa. É também uma mulher com os pés bem assentes na terra, que tem ideias políticas contrárias às de Ricardo Reis (isto se se puder considerar que Ricardo Reis tem ideias políticas). Lídia interroga-se o que faz com Ricardo Reis quando o seu próprio irmão, o marinheiro comunista, morreu em prol dos seus ideais, diametralmente opostos aos de Ricardo Reis, que encara o mundo numa perspectiva meramente temporal.
Lídia apaixona-se por Ricardo Reis, enquanto este, como é seu costume, se apaixona pela mulher inacessível, Marçanda, a jovem Coimbrã virgem e inocente, filha de um notário, portadora de um defeito físico na mão esquerda, a que terá de estender para receber um anel de casamento. Também ela, inacessível, terá um lugar nas Odes.
Ao ler uma página de um livro de José Saramago, o que primeiramente salta à vista é a falta de pontuação. O escritor limita-se ao uso da vírgula e do ponto e não recorre aos caracteres tidos por convencionais quando faz citações. Consegue, no entanto, incluir linhas e linhas de texto escritas por Ricardo Reis no texto do seu romance, especialmente nos diálogos alucinantes entre Fernando Pessoa, morto-vivo, e Ricardo Reis, cujos próprios dias se esgotam.
Apenas o leitor atento e porventura sensível à música, ou aquele que conheça profundamente a obra de Fernando Pessoa poderá identificar a poesia de Ricardo Reis na prosa de José Saramago. E só agora, perante a poesia de Ricardo Reis é que poderá o leitor reconhecer também a prosa do Prémio Nobel da Literatura nas odes do poeta.
“Fechou por alguns segundos os olhos e quando os abriu estava Fernando Pessoa sentado aos pés da cama… eu já não conto, morri, mas descanse que não faltará quem de mim dê todas as explicações…”
“O Ano da Morte de Ricardo Reis”, pg. 94.
E quase todo o diálogo entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis.
“O Ano da Morte de Ricardo Reis”, pp. 113-115.
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