Viagem na Senda das Vozes
A vida e a Obra de José Saramago
Carmel Publishing House - Jerusalem Israel
Prefácio pessoal
Há poucos anos atrás, o nome José Saramago era conhecido de poucos leitores hebreus, apenas daqueles que conseguiram ler Memorial do Convento, o primeiro livro de Saramago traduzido em hebraico (1990).
O autor despertou a minha curiosidade, mas fiquei satisfeita com a leitura deste livro e do outro que surgiu também em hebraico: O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Senti que estas duas obras completavam o meu espaço cultural destinado à literatura portuguesa.
Foi só depois de eu contactar com a língua portuguesa, de conhecer os tesouros da cultura e da literatura de Portugal, que percebi que as minhas ideias nessa época eram extremamente redutoras.
Numa conferência em que participei na biblioteca Beit Ariela em Tel Aviv com o título "Sonhos", o orador, citando um verso de um poema escrito por um poeta português, Fernando Pessoa, disse: «é um poeta que vale a pena ler».
Escrevi sobre um pedaço de papel o título do livro e o nome do poeta (sobre quem eu não ouvira nada antes). No dia seguinte dirigi-me à secção de poesia na biblioteca da minha cidade. Lá estava o livro isolado. O papel tinha aroma a novo. Parece que ninguém o tinha requisitado e talvez nem sequer aberto.
Li o livro com muito prazer. Havia poemas e fragmentos de um poeta que é muitos poetas. A decisão de investigar a importância deste poeta levou-me a procurar nos semanários e nos jornais da literatura. Um artigo escrito por Yoram Melzer era sobre Pessoa e a sua multiplicidade de heterónimos. Neste artigo, o autor dizia também que o escritor português José Saramago, escreveu um livro com um título: O Ano da Morte de Ricardo Reis, em que narra uma história sobre a vida imaginativa de um dos quatro heterónimos mais importantes da frutuosa imaginação de Pessoa. Também se anunciava que este livro seria publicado em breve em hebraico.
Penso que eu fui a primeira pessoa a adquiri-lo na livraria perto da minha casa. A leitura deste livro constitui uma viragem para mim. A combinação entre Pessoa e Saramago levou-me a decidir ir na senda de Saramago e da sua obra, para examiná-la totalmente, e talvez também escrever sobre ela.
Inexperiente na época, tentei encontrar algumas informações na Internet sobre Saramago, autor que me era totalmente desconhecido.
Encontrei cerca de dez nomes na rede (depois de o autor receber o Prémio Nobel foram adicionados centenas de milhares de sítios!). Alguns deles referiam-se ao restaurante que dá pelo nome Saramago. Um sítio era a homepage de José Saramago. Rapidamente percebi que não era o autor, mas alguém com o mesmo nome.
Outro sítio de Fernando Gouveia, um engenheiro informático, revelou-me a que o jovem gostava de ler e apresentava Saramago como o primeiro autor da sua lista.
As mensagens de correio electrónico do engenheiro revelaram-me que era uma fonte de informação formidável em tudo o que diz respeito à obra e à personalidade de Saramago.
Após saber tudo que era possível tirar desta primeira pesquisa, começou a minha verdadeira viagem nos passos de Saramago.
Fernando, e a seu amiga, Filomena (que se tornou a minha melhor amiga), tornaram-se imediatamente pen pals e o diálogo tornou-se um dos mais emocionantes que havia conhecido – diálogo que posteriormente passou a longas conversas durante encontros pessoais. Os dois, grandes admiradores do autor, concordaram ajudar - me ao longo do meu percurso.
Facultaram-me informações de grande valor sobre os mais de 800 anos de história de Portugal, sobre os autores, a cultura e a sociedade actual etc. etc. Tudo temperado com a linguagem crítica de pessoas sensíveis.
Um ano e meio após o início da nossa correspondência, quando já começava a ler em Português e estudava os Cadernos de Lanzarote e artigos de jornais escritos sobre ele, Saramago ganhou o prémio Nobel de 1998. As linhas telefónicas entre Israel e Portugal poderiam testemunhar o júbilo que nos reunia dos dois lados do Mediterrâneo. A sensação de que o interesse pela obra de Saramago tinha começado antes de ele ser apontado como candidato ao prémio Nobel, inundou-me de felicidade o coração e a alma.
Em Maio 1999 fui informada pela embaixada de Portugal no meu país, que o director da Biblioteca Nacional em Lisboa, o Professor Carlos Reis, iria chegar a Israel para uma curta estadia de dois dias. O insigne professor havia sido convidado para fazer uma palestra sobre o Saramago na Ariela Biblioteca em Tel Aviv, numa noite dedicada à literatura portuguesa.
Para a pergunta se eu concordava em viajar em Jerusalém
)minha terra natal( com o palestrante, respondi de imediato positivamente. No meu imaginário vi um homem velho (a minha representação mental de um Director de uma Biblioteca Nacional), e tinha esperanças que encontrássemos uma linguagem comum, durante esta visita à cidade santa.
Enviei rapidamente um mail para os meus amigos portugueses que me acalmaram dizendo-me que tive muita sorte em viajar em Jerusalém com o melhor e mais estimado ensaísta literário em Portugal, um professor de Literatura Portuguesa, internacionalmente reconhecido.
O encontro no lobby do hotel foi muito natural. Poucos minutos depois de nos saudarmos estávamos no carro da embaixada que foi enviado para nos receber e, imediatamente, teve início uma conversa que continua passados cerca de dez anos.
Durante cinco horas caminhámos em Jerusalém, ou por partes da cidade. Carlos Reis ficou entusiasmado e não o escondeu. Saramago tornou-se o principal assunto da nossa conversa, e logo compreendemos que embora ele fosse português e eu israelita, tínhamos lido os mesmos textos do autor (cadernos e livros). Por vezes, um de nós iniciava uma frase e o outro concluía-a naturalmente.
Carlos Reis disse-me na mesma ocasião que tinha passado três dias em Lanzarote, durante os quais havia entrevistado o escritor. As entrevistas foram reunidos no livro Diálogos com José Saramago, publicado em Portugal, diálogos em que o ensaísta-entrevistador tenta seguir as ideias e os caminhos da escrita do autor.
Esta reunião na casa do autor e as conversas entre eles criaram uma verdadeira amizade. Carlos Reis foi um dos hóspedes na Suécia, presentes na cerimónia de Prémio Nobel e ele disse-me que Pilar, a mulher de Saramago, numa das noites, usava um vestido em que foram impressas frases do livro O Evangelho segundo Jesus Cristo, o livro que foi o motivo da saída de Saramago de Portugal para Lanzarote.
Saramago e Carlos Reis em Lanzarote
Carlos Reis disse-me também que Saramago o convidou, num belo dia, para almoçar num restaurante da Serra do Bussaço, um lugar mágico. No meio da refeição, o autor entregou-lhe um saco de plástico simples e disse lhe: «este é meu presente para a Biblioteca Nacional».
Quando Carlos Reis abriu a bolsa descobriu o manuscrito do livro O Ano da Morte de Ricardo Reis. Ficou deveras emocionado. Como Director da Biblioteca Nacional em que existem milhares de livros e centenas de manuscritos compreendia melhor do que ninguém o significado do tesouro que lhe cabia em sorte e em sorte dos pesquisadores do autor.
O manuscrito do livro O Ano da Morte de Ricardo Reis pode encontrar-se em Lisboa, na secção dos "reservados" desta grande biblioteca, escondido dentro de dois grandes capas de cartão.
Numa das minhas visitas a Lisboa fui conduzida aos "reservados." Entendi imediatamente que estava a viver uma experiência que não acontece muitas vezes.
Numa leitura atenta do texto, verifiquei que estava ornamentado com correcções feitas pela mão do autor, «manuscritas», no sentido literal do termo. Ao que parece, Saramago faz, ou fazia, correcções sobre o texto impresso. Um caderno preto acompanhava o livro em que o autor escreveu observações incluindo a bibliografia que havia consultado antes (e que englobava áreas como História, Política, Filosofia e Literatura). Foi fascinante observar os sinais das indecisões antes do texto definitivo, tais como: «o que escrever no primeiro capítulo?», «quem serão as personagens?», «quais vão ser os seus nomes?», «qual vai ser o tempo que vai abrir o livro?» E ainda muito mais perguntas de vários tipos.
Esta foi uma experiência muito interessante para mim, ainda mais do que um encontro pessoal com o autor. Tocar a caligrafia quer dizer vislumbrar o interior do autor, entrar no espaço de sua intimidade sem que o autor tenha consciência disso.
Ler o livro completo que foi publicado, após as indecisões e as correcções, é um direito de quem compra o livro e o lê. Mas nesta fase o livro já não pertence ao autor, ele torna-se propriedade dos leitores.
Nem sempre o manuscrito é dado pelo autor durante a sua vida. Em geral, o manuscrito pode ser encontrado no sótão, ou nas mãos dos herdeiros que interessados apenas em ganhar uma fortuna à conta do talento do outro.
Saramago é um autor que ao oferecer o manuscrito, fornece um certificado da sua coroação como laureado do Prémio Nobel, consciente de que expõe aqui aspectos que não é possível compreender sem esta atitude. Este acto exige coragem, segurança e, principalmente, generosidade.
Nos últimos anos Saramago utiliza o processador de texto informático. A escrita sobre o ecrã do computador não nos permite, aos leitores, o encontro com as indecisões do autor. Recebemos um produto acabado e às vezes é mais claro, mais limpo de multiplicidade de sentidos. Só que nem sempre é o produto com melhor qualidade.
Não há razão para lamentar o que "está perdido". Mas ainda não vejo um substituto para a exaltação provocada pelo sentimento do contacto com o papel, com o aroma de um novo livro, folheando páginas, possuída da curiosidade própria dos fãs de literatura.
Nas minhas numerosas viagens a Portugal em que também encontrei José Saramago, passei horas sentada na Biblioteca Nacional. Ao mesmo tempo tive conversas com Carlos Reis durante as quais discutíamos as coisas que eu escrevia, e recebi dele múltiplas indicações de que estava no caminho certo. Todas essas razões, e muitas mais do que este texto curto pode conter, levaram-me a escrever este livro que é um gesto de reconhecimento de muitas pessoas que introduziram um novo prazer na minha vida. Um gosto de algo que está perto e longe ao mesmo tempo. Proximidade de uma nova cultura que aparentemente foi algo difícil de penetrar, e que aqui se torna uma parte de mim, algo que eu não poderei ignorar nunca mais.
Graças à minha boa sorte, encontrei pessoas de diferentes meios sociais e culturais. Essa experiência é o que eu quero transmitir ao leitor, bem como partilhar com os leitores Israelitas a minha experiência pessoal. Neste livro vou apresentar uma leitura pessoal e feminina da obra de José Saramago. Algumas dessas leituras passaram no julgamento de tantos amáveis leitores, que seria impossível mencioná-los todos, em tão breve texto.
Agradeço a José Saramago o facto de a sua escrita me ter iniciado numa pesquisa sobre a sua obra. Graças a ele, encontrei o Professor Carlos Reis, os amigos Fernando e Filomena, para além de um círculo inumerável de pessoas que surgiu no meu caminho.
Agradeço à embaixada portuguesa em Israel pelo apoio que me foi dado durante todo o percurso, e principalmente a Fernando Ferreira da Silva, adido cultural da embaixada, alguém que fala perfeitamente hebraico, e que foi um companheiro perfeito no programa sobre a literatura na rádio israelita "palavras que tentam tocar", dedicado exclusivamente à obra de José Saramago.
Um agradecimento especial aos meus professores de português: Lúcia Mucznik e Inacio Steindhardt, e a Miriam Tivon, a tradutora para hebraico dos romances de Saramago, por longos anos de amizade e incentivo.
Finalmente, quero agradecer à minha família que me acompanhou nesta longa viagem com paciência e compreensão. Uma viagem que os "confundiu" também a eles, ao ponto de mais do que uma vez me apresentarem como alguém que nasceu em Portugal, quando de facto as minhas raízes estão profundamente implantadas em Israel.
Índice
Préfacio Pessoal - Viagem na Senda do Saramago
Saramago - curta biografia e o discurso na cerimônia do Prêmio Nobel 1998
CAPÍTULO I - Orquestração das vozes na obra de Saramago -
A voz do autor-narrador em Ensaio sobre a Cegueira
Narrador Intruso e Neutro
Narrador testemunha nos acontecimentos e os narra por dentro
Narrador em máscara do author mesmo – o velho da venda preta e o cego de nascença
As protagonistas todos como narradores
O escritor cego
As vozes dos homens em Ensaio sobre a Cegueira
A voz de poder como Canto Gregoriano
O percurso da voz de poder em Ensaio sobre a Cegueira
As ordens de poder em Ensaio sobre a Cegueira
As ordens como Canto Gregoriano
vozes dos homens no grande circuito
Vozes dos todos os homens cegos no manicómio
Vozes dos maldavos
Vozes dos homens no estreito circuito
As vozes das mulheres
As mulheres em Ensaio sobre a Cegueira
A estada no manicómio – o papel das mulheres e a forma do discurso entre si e entre elas e os homens
O debate antes da cena da violação
O médico, a mulher do médico e a rapariga dos oculos escuros – antes da violação
A cena da violação
O priemeiro banho – dentro do manicómio – depois a violação
A cena de assassinato
A saída para liberdade – a mulher do médico e as outras mulheres
O segunda banho – As Três Graças
A cena da igreja
Fragmentos dos cadernos do Lanzarote
CAPÍTULO II - A Dialéctica em cinco exercícios de autobiografia no romance Manual de Pintura e Caligrafia
Primeiro exercicio de autobiografia, em forma de narrative de viagem, Titulo: As impossíveis crónicas.
Segundo exercicio de autobiografia em forma de capítulo de livro, Titulo: Eu, bienal em Veneza.
Terceiro exercicio de autobiografia em forma de capítulo de livro, Titulo: O comprador de bilhetes- postais
Quarto exercicio de autobiografia em forma de capítulo de livro, Titulo: Os dois corações do mundo.
Quinto e último exercicio de autobiografia, em forma de narrative de viagem, Titulo: As luzes e as sombras.
Anexo – excerto do livro "Diálogos com José Saramago"
CAPÍTULO III – o herói saramaguiano e a responsibilidade – Todos os Nomes; Memorial do Convento; História do Cerco de Lisboa
Introdução
José, o protagonista em Todos os Nomes
Os diálogos imaginários de José
Os diálogos reais
Baltasar Mateus, o protagonista em Memorial do Convento
Raimundo Silva, o protagonista em História do Cerco de Lisboa
CAPÍTULO IV – O motivo da culpabilidade em O Evangelho segundo Jesus Cristo
A concepção da culpabilidade na tradição ocidental
Os origens do motivo da culpabilidade em O Evangelho segundo Jesus Cristo
José e o sentido da culpabilidade
Anexo – excertos dos Cadernos de Lanzarote sobre O Evangelho segundo Jesus Cristo
CAPÍTULO V – Saramago e Fernando Pessoa – O Ano da Morte de Ricardo Reis
Introdução – Saramago e intertextualidade
Fernando Pessoa – galeria das vozes – um poeta que é muitos poetas
Os heterónimos tornar-se uma parte intrinseco da vida de Pessoa
O Ano da Morte de Ricardo Reis
Alguns exemplos da intertextualidade em O Ano da Morte de Ricardo Reis
Lídia e Marcenda – as figuras femininas no romance
Os encontros imaginários entre Pessoa e Ricardo Reis
Conclusão
Bibliografia